Amélie virou um feto. Não foi planejada, como milhões de crianças no Brasil, que simplesmente brotam nos mais variados úteros. Fruto de nenhum projeto, nenhuma vontade, nenhuma reflexão. Crescia dentro de sua mãe, durante meses totalmente confusos e desconfortáveis. Amélie era um broto em meio ao caos psicológico de traumas não resolvidos. A placenta, a casa durante 9 meses, nem sempre foi um lar aconchegante de estar. Lá dentro ela ouvia vozes e choro, além do som que sua mãe fazia ao vomitar com tanta frequência. O peso do corpo durante a gestação deveria aumentar, mas só diminuía. A comida era expelida quase todos os dias. Os enjoos não cessaram até o 6º mês. A década era de 80 e a sociedade ainda não se importava com os sentimentos de uma mulher, apesar das inúmeras tentativas feministas de mostrar a realidade. Uma mãe não tinha nome. Não tinha rosto, gosto, vontades, sonhos. Era só uma mãe. “Só” uma mãe.
O pai saía para trabalhar e garantir o sustento da família. Todos os dias ele ouvia as reclamações dela sobre a gravidez e a maternidade. Não encontrava nenhuma saída para os momentos ruins da esposa. Acordava cedo e voltava tarde, comparava os preços hiperinflacionados. Estava em ascensão na carreira, o trabalho era corrido e tinha grandes responsabilidades. Era um homem emotivo, mas escondia o que sentia para não aparentar vulnerabilidade. Nem sempre conseguia fingir, sua esposa sabia cada um de seus pontos fracos. Pontos humanos e sensíveis, como qualquer ser humano sem um transtorno de personalidade. Na verdade, sua mente se ocupava dela e do trabalho, mas precisava pagar as contas. Comida e casa eram a prioridade. Sua mente tinha um ponto de fixação: a infância pobre que viveu sem nenhum luxo, apenas o básico do básico.
Eles já tinham um filho de 4 anos. Esperto, forte, extrovertido e sorridente. A gravidez dele foi diferente e apoiada pelos avós. A mãe não ficou sozinha e nem desamparada, apesar das dificuldades constantes de se criar um filho nesse país. O início foi difícil também e cansativo, mas logo passou e ele estava crescendo relativamente bem. Era o centro das atenções. Comia mais do que deveria. Vez ou outra apareciam alguns problemas de saúde, como refluxos gástricos, que eram corrigidos com oração, chás e medicamentos. Gostava de aprontar e testar os limites da mãe, mas aquilo parecia coisa normal de uma criança de 4 anos. O irmão ainda não entendia o que era ter uma irmã, mas sabia que a sementinha crescia na barriga da mamãe.
Aos domingos, a família ouvia os sermões do pastor durante os cultos de três horas, um hábito que passou de pais para filhos. A mãe acreditava na importância dos valores cristãos para a família. Tinha culto de manhã e à noite, às tardes serviam como momentos de descanso. Os cultos se dividiam em louvor, recados do pastor, dízimo, cumprimento aos visitantes e aos irmãos em cristos e louvor final. O filho costumava ficar em outro ambiente, com crianças da mesma idade e lá faziam um excelente trabalho de introdução ao cristianismo, com ensino de histórias da Bíblia, interpretadas à maneira da professora. Nem sempre ele gostava de ficar trancado na sala durante as três horas, chorava sempre depois do lanche. O pai vinha buscar de vez em quando o garoto e, para distrair, eles se dirigiam até a copa onde ficavam os copinhos da ceia e os dois brincavam de encaixar nos buraquinhos da bandeja, no menor tempo possível. Enquanto isso, alguns fiéis cochilavam no banco da igreja ao som da voz calma de um pastor americano cheio de sotaque. Nem sempre era possível entender o que ele falava.
O feto crescia nesse contexto, até uma mudança alterar de vez o ânimo da mãe.