Eu sempre me achei estranha. Um pouco fora dos padrões. Quando era criança, tinha medo de tudo. Era super tímida e muito ingênua. Eu sei, você pode tentar me consolar falando que qualquer criança é ingênua. Não, você não está entendendo, eu era realmente ingênua. Meu pai inventava histórias de que, para arrancar o dente, teria que amarrar o fio dental ao dente e depois na maçaneta, na sequência, bater a porta. Eu acreditava naquilo com o poder do meu coração. Era aterrorizante. Aliás, os pais dos anos 80 tinham algumas práticas educacionais bem peculiares.
Eu frequentei a igreja até meus 24 anos. Não tive escolha, simplesmente me arrastaram para lá. Eu não sabia o que era uma vida fora das doutrinas evangélicas. Tudo era pecado. Na verdade, você já nasce pecador e com uma dívida enorme que é implorar o perdão para quem? Nada menos que Ele: Jesus Christ. O filho de Deus, meu amigo, só isso, pouca coisa. Pressão de estar nesse mundo? Imagina. Praticamente, você tem que se desculpar por ter nascido.
Nem a tia da escola dominical aliviava a barra da criançada. Durante o “cultinho” (diminutivo de culto, mais conhecido como lavagem cerebral infantil) a gente cantava musiquinhas sobre Deus estar nos olhando. Ele sabia cada pecado que a gente cometia, Ele via tudo, Ele estava presente em tudo. Para uma criança como eu, extremamente neurótica, isso era assustador. Era como viver em um Big Brother, onde o Boninho é o próprio Deus e você jamais sairá da casa. Se sair, é dali para o inferno, sem prova de resistência. Sem Fiat, sem C&A, sem Avon, sem festinha.
Ok, talvez eu esteja sendo muito cruel, porque, na verdade, você tinha a chance de ser perdoado e não ser teletransportado às trevas. Ocorre que, eu não acreditava muito nisso. Orar parecia vago demais. E se eu não tivesse orado direito? E se Ele não tivesse me ouvido? Qual garantia eu teria?
Uma vez, já cansada desse papo de ter que aceitar Jesus no coração, eu resolvi aceitar logo, para acabar com a angústia. Minha irmã já tinha aceitado, só faltava eu. Não queria ficar para trás, porque era muito tímida. E depois que você aceita Jesus, tem o batismo. O batismo é algo simbólico, onde o pastor mergulha o irmão em uma banheira, como forma de demonstrar que aquela pessoa renasceu para uma nova vida em Cristo e está salva. Basicamente, agora você vai para o céu.
O batismo acontece na frente de toda a igreja, dá muita vergonha. Dias antes do grande momento eu pensava em coisas como: E se eu escorregar na escadinha para entrar na banheira? E se eu me afogar? E se eu bater a cabeça? E se, quando eu descer, meu pé enroscar em um degrau e eu sair voando com aquela roupa branca molhada? Eram tantos acidentes possíveis de acontecer! Por que raios o ser humano precisa de tantas simbologias? Não podia só fazer a oração no meu canto? Não, não. Porque a vida não é fácil. A vida é dura.
Existem dois grupos na igreja: os que já aceitaram a Jesus e os que não aceitaram. Se você está no segundo grupo, a sensação de ser um bosta é ainda maior. Então, eu só queria diminuir um pouco essa sensação. Eu fiz a tal oração e passei uma semana inteira pensando se aquilo teve validade jurídica, pois eu havia aberto o olho no meio do processo. Oração é de olho fechado! Será que eu tive contato real com Deus? Eu seria uma farsa ao me batizar. Mentir é pecado. Eu estaria mentindo perante a igreja inteira. Você vai para o inferno, se não aceitar a Jesus. E, no caso, eu não sabia se tinha realmente aceitado. Entende a paranoia?
No auge dos meus 9 anos de existência eu me perdia mentalmente. Eu não sei se uma criança normal nessa idade pensava as mesmas coisas que eu.
Eu me batizei e não enrosquei o pé no degrau da escada da banheira. Deu tudo certo. Minha mãe chorou. Eu não senti felicidade e nem tristeza, apenas medo de cometer algum mico e sofrer bullying dos irmãos em Cristo. Aquela etapa tinha sido finalizada com êxito e agora eu poderia arranjar outra coisa para passar vergonha.
E eu arranjei mesmo…