O vegetarianismo e o veganismo estiveram por perto desde cedo, mas toda vez que sentia que eu precisaria me “privar de algo”, um alarme disparava. A transformação dos hábitos alimentares parece ser o maior desafio para quem deseja se tornar vegano. O que favorece o veganismo é o fato de que ele é perfeitamente possível e acessível, porém envolve mudanças, justamente porque busca atingir mudanças na forma como o mundo funciona, no geral.
Hábitos alimentares herdados e adquiridos
Pensando aqui retrospectivamente, meus hábitos alimentaressão um assunto complicado. Talvez eu deva começar contando que fui obrigada a fazer dieta com nutricionista pela primeira vez com 7 anos de idade. Minha mãe se formou psicóloga, meu pai, professor de educação física e eu era uma criança beirando à obesidade com compulsões alimentares.
Entre a lembrança das pílulas “para perder gordura” e os shakes da Herbalife que minha mãe consumia na cozinha, o que eu me lembro mesmo é de sentir raiva e inadequação. Parecia uma espécie de castigo cósmico o fato de que só me era permitido comer massas e sobremesas quinzenalmente enquanto minha irmã mais nova era abençoada com a magreza, ainda que seus hábitos alimentares consistissem em pão com maionese, salsicha e bolacha. Até hoje evito balanças e as considero um “elemento de opressão do sistema”.
Eu era roqueira, me aproximei do universo do punk e conheci o veganismo antes dos 14 anos. Na juventude, meu espírito de revolta em relação à sociedade já era grande e tomei decisões em relaçãoaos meus hábitos alimentares taiscomo não tomarrefrigerantes e nem comer no Mc Donald’s. A propostade boicotar símbolos do “capetalismo” que exploravamtrabalhadores e destruíam o meio ambienteconvenientemente convergia com decisões boas para aminha saúde, então acho que foi algo meio natural.
Lembro que não foi fácil desistir dos lanches! Toda vezque a minha mãe levava a gente ao dentista, o“momento família” incluia o drive-thru do McDonald’s. Eu precisava resistir à batata frita no trânsitoaté em casa. TODA. SANTA.VEZ.
Apesar de gostar de um amigo vegetariano, minha irmãvirou vegetariana logo depois que assistiu ao documentário “Terráqueos”. Ela ficou muito chocada e passou a ficar enjoada, chegando até a vomitar quando comeu carne depois disso. Foi realmente um divisor de águas.
Comecei a aprender como cozinhar coisas vegetarianas por conta dela. Não tive coragem de assistir a lista de documentários de iniciação e nem mudei minha dieta, mas decidi que seria a maior apoiadora possível da causa dentro da minha casa. Coisas curiosas aconteceram depois. Minha irmã começou a fazer curso técnico de nutrição (até que desistiu) e eu cheguei a ser hospitalizada por conta da minha má alimentação.
Sinto que essa revolta na juventude também cruzava com questões que envolvem ser mulher, lidar com o sobrepeso e com dificuldades econômicas. Houve esse momento nebuloso da minha vida, próximo dos meus 16 anos, em que não havia dinheiro para a condução e eu passava muitas horas fora de casa. Acabei fazendo escolhas muito ruins baseadas em ideias muito ruins. Costumava comer uma fruta, um steak de frango que vendia na cantina à 1 real e um chocolate por dia, em umarotina puxada de estudar de manhã, à tarde e mais alguns “bicos” eventuais – que era o que eu conseguia na época. Bom, não durei muito tempo nesse esquema, obviamente.
As possibilidades de mudança
O que me fez mudar meus hábitos alimentares e me tornar vegana, no final das contas? Para mim, as pessoas foram muito importantes. Eu podia ver a teoria na prática, ao mesmo tempo em que criava a perspectiva de possibilidade de mudança em mim mesma por meio de exemplos.
Aos 19 anos, passei a morar sozinha. Casei, tinha um bom emprego e uma boa situação econômica. Minha ex mulher fazia faculdade de ciências ambientais e em algum momento a palavra do veganismo bateu na porta dela também. Ela partilhava comigo o horror às dietas, já que simbolizamuma forte opressão aos corpos das mulheres. Para além de seus hábitos alimentares, ela estava próxima do ativismo ambiental.
Passei a controlar o consumo de produtos de origem animal, reduzindo para, no máximo, duas ou três vezes por semana quanto a alimentação. Queria manter o orçamento comprando produtos que eu considerava melhores. Experimentei ovos de galinhas que supostamente viviam soltas e felizes, carnes kosher e produtos com selos verdes de todos os tipos. Aos poucos, fui reduzindo o consumo de carne e demais produtos até o ponto em que meus hábitos alimentares já eram percebidoscomodiferentes em relação às pessoas ao meu redor.
Então um amigo vegano passou a frequentar a minha casa e me perguntou por que eu não agia de acordo com as coisas nas quais acreditava e das quais sabia de forma mais efetiva. Não dei o braço a torcer, mas esse foi um momento importante para minha mudança. Depois conheci meu namorado, que tinha vontade de virar vegetariano. Falei para ele que, para continuar comendo ovos,leite e queijo, achava indiferente comer ou não a carne dos mesmos bichos, considerando as minhas motivações relacionadas à produção industrial e o fato de vivermos numa cidade como São Paulo. Contrapropus o veganismo. Aceitei, enfim. Penso que meu processo foi lento e demorei para modificar não só meus hábitos alimentares como meus hábitos todos.
Passei a buscar produtos que eu considero éticos o suficiente para valerem o meu dinheiro e a evitarao máximo financiar pessoalmente sofrimento e exploração humana, animal e danos gerais ao meio ambiente. Aprendi superficialmente a ler o rótulo dos produtos e a acompanhar de forma mais atenciosa como as coisas que compro são produzidas. Vale dizer que os únicos produtos que provocavam aquela sensação de privação eram os alimentos. A maior parte dos outros itens do meu mercado foi fácil e rapidamente substituída, sem nenhum tipo de crise ou sofrimento pessoal.
Dicas para quem quer começar: o porquê das coisas
Sobre o processo da minha irmã, concordo que as pessoas precisam mesmo saber como as coisasfuncionam e entendo o “choque de realidade” como estratégia de mudança; ele funciona. Entretantotambém acredito que para que a mudança dos hábitos alimentares e do modo de consumo seja efetiva e duradoura, é necessário um conjunto de condições favoráveis.
Na prática, minha decisão envolveu uma certa dose de autonomia e muito tempo avaliando prós econtras. O número de razões pró-veganismo sempre foi alto e só continuou a crescer. E o que medesmotivava era, basicamente:
1. O meu paladar: sempre gostei do sabor da carne de vaca, do frango, do peixe, do leite, dos ovos ede todas as coisas.
2. A conveniência e o conforto: sim, a sociedade ocidental está organizada em torno da indústria dacarne e nós vivemos num país em que o churrasco é quase sagrado, então é óbvio que ir contra essesistema e contra a nossa própria cultura é inconveniente e relativamente desconfortável;
3. A sensação de privação: como tentei explicar sobre a minha história pessoal, hoje acho que esseponto se combinava com o primeiro de uma forma muito particular.
Em termos culturais, o consumo da carne é associado à superação da pobreza para muitas pessoas.Muitas vezes vegetarianos e veganos são tomados como “frescos”, ouvindo discursos moralizadores sobre os tempos em que não se havia o que comer. Negar comida, especialmente a carne, soa como ofensa também porque em outros tempos ela foi considerada “luxo” e até hoje é fetichizada de uma forma muito particular.
Além disso, tem essa questão da afetividade que desenvolvemos com pratos tradicionais. Talvez a sua vó simplesmente não queira modificar as receitas dela para você, mas você já pensou em fazer uma versão vegana da receita favorita da sua vó? As situações de sociabilidade podem trazer algum tipo de estranhamento, porém há inúmeras formas criativas para contornar esse desconforto.
E existem outros preconceitos a serem superados, como a ideia de que o veganismo ou o vegetarianismo é “coisa de gente rica”, por exemplo. Há produtos industrializados que são mais caros e possibilitam uma solução relativamente fácil para manter hábitos alimentares. Talvez eles facilitem a transição e têm sua importância, mas contribuem para o estigma de que poucos podem bancar esse estilo de vida. Além disso, não acredito que apostar apenas neles seja a melhor estratégia em relação à saúde ou ao meio ambiente. Vivemos num país tropical abençoado por uma biodiversidade incrível e torço pelos orgânicos.
Todas as dietas que me foram recomendadas concordavam sobre comer mais frutas e vegetaisdentro de uma dieta balanceada. Busquei informações confiáveis sobre porque não precisamos deprodutos de origem animal e como atingir uma boa nutrição, então o preconceito relacionado àsaúde deixou de existir. Em relação às sensações de privação e aos prazeres do paladar, quando eusoube que existiam sorvetes veganos deliciosos, pensei “pronto, agora não tenho mais desculpas”. Opaladar também é algo cultural e, felizmente, há muitas coisas gostosas para se experimentar.
Sugiro que você passe algum tempo pesquisando, pensando e sendo honesto com você mesmosobre o porquê das coisas. Inclusive sobre ser vegetariano ou vegano. No meu caso, acredito que foiuma questão de buscar atingir coerência com o que eu acredito ser mais ético e melhor – ou menosantiético e menos pior, dependendo do meu humor sobre o assunto.
A minha última dica para quem quer ser vegano é que não tente ser vegetariano se você vive numa cidade urbana, rs. Do meu ponto de vista, o vegetarianismo não resolve a questão da exploração animal, nem do meio ambiente e nem da sua saúde. Para mim, as condições de vida são tão ou mais importantes do que as condições de morte. E, se você sabe qual é a melhor forma de fazer algo, porque não se propôr a atingi-la?
Se o veganismo ainda lhe parece radical e impossível, vá tentando. Crie sua própria estratégia detransição, sem pressão. E se a sua motivação não for pautada na aprovação dos outros, você sóprecisa ir resolvendo com você mesmo. Tenho certeza que você vai dar seu jeito.
E você, o que fez ou faz para mudar seus hábitos? Você é vegetariano ou vegano? Conte nos comentários.
Texto escrito pela convidada Natalia Lopes.
Natalia é formada em Ciências Sociais pela UNIFESP, é vegana, questionadora e adora temas relacionados a direitos humanos, urbanismo, feminismo, veganismo, arte e cultura e meio ambiente.